domingo, 7 de outubro de 2012

Base sólida para a reconstrução



No livro de Neemias, em seu capítulo quinto, encontramos um episódio essencial para o processo de reconstrução da cidade de Jerusalém, tarefa a qual o filho de Hacalias tinha se proposto realizar diante de Deus. Trata-se do momento em que os homens e mulheres do povo clamaram contra seus irmãos pela situação em que se encontravam: pediam trigo para não morrerem de fome, eles e seus filhos; tiveram suas terras, suas plantações e suas casas penhoradas e na mão de credores; precisavam tomar empréstimos até para pagar os tributos do rei; por fim, seus próprios filhos e filhas tinham sido sujeitos à escravidão a outros judeus, e não havia nada que eles pudessem fazer, eles simplesmente não tinham como se defender (Ne 5:1-5). Estabeleceu-se uma situação em que privilegiados aproveitavam-se da condição frágil e desesperadora dos outros para explorá-los sem limites; estado agravado pelo fato dos credores serem irmãos dos devedores, todos judeus.

É comum, no nosso dia-a-dia, ouvirmos expressões como “tempo é dinheiro” e “amigos, amigos, negócios à parte”. Devido à contínua repetição, muitos cristãos acabam, sem perceber, moldando-se ao conteúdo destas máximas que estabelecem o ganhar dinheiro como parâmetro “ético” no lugar do evangelho, orientando suas vidas e tomando suas decisões baseados na lógica insensível, fria e desumana do “custo de oportunidade”. Os conceitos cristãos de misericórdia, justiça, serviço e mordomia não mais definem e apontam o uso dos recursos dados por Deus. Do mesmo modo que nos tempos de Neemias, há hoje irmãos que ao emprestar recursos a pessoas em dificuldades, em situação de privação e angústia, muitas vezes irmãos na fé, quando não parentes próximos, o fazem a juros, incorrendo no mesmo comportamento dos credores judeus, alvos da indignação do povo. Ignorar o sofrimento de parentes e irmãos estando em situação de ajudá-los é um ato infeliz, condenado firmemente nas palavras do apóstolo Paulo a Timóteo: se alguém não tem cuidado dos seus, e principalmente dos da sua família, negou a fé, e é pior do que o infiel (1Tm 5:8).  

Crentes que são empregadores, empresários, e não garantem nem respeitam os direitos trabalhistas dos seus empregados, como a carteira assinada; que não lhes pagam em dia e condignamente o salário devido (Mt 10:10) mesmo tendo a possibilidade de fazê-lo (Tiago 5:4,5); que os constrangem a trabalhos e serviços extras sem a devida compensação, aproveitando-se da fragilidade e impotência alheia (... e nada podemos fazer... Ne 5:5), agem como os usurários dos tempos de Neemias. Tanto no passado quanto nos dias de hoje, tais pessoas se utilizam de argumentos cínicos e distantes do temor do Senhor para tentarem justificar a exploração e o abuso que cometem com aqueles que se encontram desprotegidos e em suas mãos: dizem que “escolheram” ajudar, quando podiam se negar a fazê-lo; o fato é que se se decide ajudar alguém, deve-se fazê-lo sem se buscar tirar qualquer vantagem disso. Ainda mais grave se torna este tipo de comportamento patronal quando os empregados, desrespeitados em seus direitos e dignidade, são irmãos em Cristo Jesus. Tal situação escandaliza duplamente o evangelho.

Neemias, ao tomar conhecimento da situação do povo, muito se aborreceu e se indignou, agindo energicamente para corrigi-la por identificar ali um claro desrespeito à lei de Deus - O que vocês estão fazendo não está certo. Vocês devem andar no temor do Senhor para evitar a zombaria dos outros povos... (Ne 5:9). Ele identificou o erro e agiu para extirpá-lo de imediato. Tratou aqueles homens pelo que eles realmente eram: Usurários! Exigindo deles a devolução de absolutamente tudo o que haviam tomado dos seus irmãos como consequência das penhoras, incluindo os juros cobrados. Para o empregador que nega os direitos básicos dos seus empregados, compensar a falta de testemunho com religiosidade - músicas, reuniões e cultos no local de trabalho, “fartas” contribuições e participação nas atividades eclesiásticas – pode até iludir a maioria dos homens e a si mesmo, mas não engana os que, à luz do Evangelho, se atém mais aos atos que às palavras, e, mais importante, não engana a Deus (Tg 1:22).

Neemias e seus chegados abriram mão do dinheiro e do trigo que tinham emprestado, pois levaram em conta o estado de dificuldade do povo. Posteriormente, quando atuando como governador na terra de Judá,  o servo de Deus se absteve das práticas opressoras e impiedosas dos seus antecessores e declarou o porquê: eu assim não fiz, por causa do temor de Deus (Ne 5:15). O cristão não se aproveita da fragilidade do outro para lucrar. O cristão não se esconde por trás de bordões cínicos, criados por aqueles que servem à riqueza, como desculpa para ser insensível e indiferente à situação do próximo, mas anda segundo a palavra da verdade, agindo retamente. O cristão abre mão de um direito seu, se a perpetração desse direito vier a privar outros de recursos que são essenciais à sua dignidade.

O servo do Senhor que liderava a reconstrução de Jerusalém convocou um grande ajuntamento e confrontou um pecado real que afetava a vida de todo o povo remanescente na terra de Judá. Tal atitude nos fornece dois pontos de reflexão: O primeiro é que não vale a pena continuarmos a vida diária na comunidade cristã andando no automático, com muito ativismo e pouca ou nenhuma reflexão e autocrítica, sem tratarmos os pecados que vão surgindo no caminho. Para Neemias, a correção de rumo era tão importante quanto à reconstrução em si, caso contrário, estariam edificando um castelo de areia, com bases que não apontavam para o reino de Deus. O segundo ponto é que cabe a nós e, sobretudo, às nossas lideranças, na forma dos presbíteros docentes e regentes, refletirmos se as práticas pecaminosas denunciadas pelo povo de outrora e combatidas por Neemias, não estão presentes também hoje entre nós, e se não merecem ser tratadas com o mesmo zelo e diligência com que o são outros pecados, notadamente os relativos à sensualidade.