sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Tobias e o sumo sacerdote

São constantes nas conversas e sermões em nossas comunidades as referências às igrejas neopentecostais, não apenas pela interpretação que fazem da Bíblia, mas também pelo uso e direcionamento dado por elas aos recursos obtidos através das ofertas dos seus fiéis. Não nos deixemos, contudo, cair na tentação fácil de olhar apenas para as práticas comuns a denominações adeptas da teologia da prosperidade, mas foquemos, antes (Mt 7:3-5), nossas igrejas históricas tradicionais, procurando nos concentrar no segundo aspecto, o do uso inadequado dos recursos devolvidos a Deus em forma de dízimos e ofertas. Não vamos nos ater aos casos clássicos de uso da fé para ganhar dinheiro, mas àquelas ações por vezes pequenas, discretas e habituais, que agridem o evangelho, não sendo percebidas pela maioria das pessoas, mas que saltam aos olhos e trazem indignação àqueles cujo mover do Espírito se traduz em discernimento, temor e apego fiel à Palavra.

A Palavra de Deus faz um relato que, se trazido aos nossos dias, pode gerar reflexões importantes e, principalmente, arrependimento e correção de práticas erradas para com os recursos do Reino de Deus e da sua Igreja. Ela conta que em determinado momento da experiência do povo de Israel após a volta do exílio babilônico, Eliasibe, o sumo sacerdote judeu, ao se tornar parente de um homem chamado Tobias, passou a beneficiá-lo, tomando um espaço do pátio da Casa de Deus e transformando-o numa grande câmara mobiliada para seu novo aparentado (Ne 13:4-14). Tal fato se deu durante a ausência de Neemias de Jerusalém, uma vez que o servo de Deus se encontrava na Babilônia, em audiência com o rei Artaxerxes. Ao voltar a Jerusalém Neemias tomou conhecimento do que havia acontecido, segundo a descrição bíblica que segue: Então, soube do mal que Eliasibe fizera para beneficiar a Tobias, fazendo-lhe uma câmara nos pátios da Casa de Deus. Isso muito me indignou a tal ponto, que atirei todos os móveis da casa de Tobias fora da Câmara.  (Ne 13:7,8)

O sacerdote havia beneficiado alguém próximo (parentes, amigos ou apoiadores) com uma parte do templo e com recursos deste. Ao mesmo tempo, como é comum nesses casos, reteve e desviou os recursos, os quais deveriam se destinar à execução dos rituais litúrgicos, e à manutenção dos levitas e dos sacerdotes - o ato errado de privilégio tem como outra face a injustiça e o desrespeito para com outras pessoas. Tais ações condenáveis tinham consequências práticas e públicas, uma vez que eram visíveis e prejudicavam diretamente a muitos (Ne 13:10). Entretanto, apesar de perceptíveis por um grande número de pessoas, as medidas infames tomadas pelo sumo sacerdote não foram recriminadas, ou se o foram, não tiveram força suficiente para impedir sua consecução. Aparentemente o mal estava feito e era inexorável. Mas havia Neemias, e com ele o discernimento, a coragem e a intrepidez daqueles cujo único compromisso é com a Palavra de Deus, e não com os interesses e conveniências dos homens; ele corrigiu o rumo daquela situação de maneira enérgica e definitiva, jogando os móveis para fora, purificando as câmaras e restituindo os lugares dos levitas, bem como tudo o que lhes era destinado. Nos dias de hoje, o ponto levantado por Neemias foi adotado pela Ciência Contábil como um princípio norteador: o Princípio da Entidade, que enfatiza a necessidade de separação do patrimônio dos sócios ou proprietários do patrimônio da entidade, seja ela de que origem for. Por trás de tal princípio está o ideal de transparência, clareza e fidedignidade no uso dos recursos e nas informações prestadas a todos os interessados.

Neemias, após arrancar os móveis da câmara, contendeu com os oficiais e magistrados, arguindo-os: Por que se desamparou a Casa de Deus? (Ne 13:11) O questionamento mostra que aqueles homens, pela função que exerciam, deveriam ter agido preventiva ou reativamente para impedir o mal, e não o fizeram; deveriam ter agido com firmeza ao detectarem a arbitrariedade, a dissimulação e o autoritarismo do sacerdote, características que passam longe do evangelho de Cristo. Após inquirir aquele conselho, e para a vergonha dos que o compunham, o servo do Senhor tratou de reestabelecer ele mesmo os levitas aos seus antigos postos. De modo a concertar o erro causado pela má-fé de Eliasibe e pela inação dos oficiais, Neemias colocou quatro pessoas irrepreensíveis e dignas de confiança (entre sacerdotes, escribas e levitas) para cuidarem dos depósitos e da distribuição de suprimentos aos seus colegas. O antigo copeiro do rei Artaxerxes sabia que não podia colocar qualquer pessoa para cuidar dos recursos da Casa de Deus, pessoas que geravam dúvidas, desconfianças ou suspeitas. Ele era suficientemente sábio para saber que a presença de servos fiéis, sob os quais não pairava qualquer sombra de dúvida, era não apenas desejável, mas necessária.

Atualmente, o uso inadequado dos recursos nas igrejas tradicionais, quando existe, reside majoritariamente na falta transparência, de critérios claros, justos, razoáveis e de fácil compreensão, seja nas decisões, seja na execução, bem como na falta de constância e previsibilidade de parâmetros, o que dá margem ao voluntarismo e ao autoritarismo. A autoridade vem de Deus, já o autoritarismo vem dos homens, e deve ser devidamente confrontado e corrigido.

O sumo sacerdote errou. Conselhos e pastores também erram. Não obstante, devemos observar se o erro é consequência direta de práticas administrativas e decisórias condenáveis, de uma liderança impositiva e manipuladora, ou se não passa de uma fatalidade, ocorrida apesar da justeza, do acerto e da coerência do processo com a mente de Cristo. A oração, utilizada como álibi para toda e qualquer medida, em si, não é garantia de um agir correto, devendo-se atentar para as ações, os frutos, a coerência dos critérios adotados com os valores do Reino; autoritarismo, imprudência e arbitrariedade são incoerentes com o evangelho, e por isso não devem ser aceitos com a desculpa de que houve oração. A Igreja omissa na Alemanha nazista, os holandeses calvinistas escravagistas do século XVII em Pernambuco, as igrejas segregacionistas no sul dos EUA (e na África do Sul), de onde boa parte do protestantismo brasileiro se origina; conquanto todos eles orassem, perpetraram erros graves ao longo de suas histórias, tanto por suas ações quanto omissões, erros estes que repercutem negativamente em suas sociedades até hoje.

A ausência de Neemias abriu espaço para o erro. Neemias fora de Jerusalém era a ausência de um espírito que tem temor, é fiel e zeloso da palavra, obedece aos mandamentos, e não tergiversa quando o evangelho é menosprezado; um espírito crítico e vigilante, cuja contínua transformação da mente pelo Espírito não permite que tenha o entendimento entorpecido, não mais distinguindo o certo do errado. Neemias não era sacerdote, profeta ou escriba, não tinha nenhum cargo oficial na estrutura religiosa da época, não obstante agiu com poder, motivado pela coerência com a Palavra. Nós somos (ou deveríamos ser) os Neemias de hoje, não podemos nos ausentar da administração das nossas igrejas, sob pena de permitirmos a existência ou o surgimento de hábitos e práticas que desagradam a Deus. Temos que estar sempre alertas para identificar atos que não se coadunam com o a Palavra, não importando se vêm de nós mesmos, do nosso irmão ou da liderança; para isso é necessário que tenhamos conhecimento do que se passa administrativamente na igreja, de maneira que possamos ser fiéis vigilantes dos recursos do reino. Somos todos sacerdotes, apesar desta verdade bíblica ser pouco enfatizada em tempos de alguns líderes pouco afeitos a contrariedades, por atrelaram a palavra liderança ao poder de exercer sua vontade e não à possibilidade de servir mais. Uma liderança que não está aberta a questionamentos e exortações baseados na Palavra mostra-se em descompasso com o evangelho, e deve ser levada a mudar de direção, pois suas velas estão contra o sopro do Espírito. Preferências arbitrárias na escolha dos fornecedores de equipamentos, materiais e serviços, critérios confusos e questionáveis no direcionamento dos recursos para obreiros e missionários, benefícios abusivos, etc. A figura dos pastores e presbíteros não pode ofuscar ou tirar a clareza e a autoridade primeira das Escrituras. Sacerdotes, falsos profetas, líderes corruptos e infiéis ao longo da bíblia deveriam nos servir de alerta para que a submissão inicial não se torne acrítica, confortável e preguiçosa, tornando-nos cúmplices do erro, cegando-nos para o mal.

Neemias por diversas e repetidas vezes se aborreceu (Ne 5:6), repreendeu (Ne 5:7), questionou (Ne 5:9), se indignou (Ne 13:8), contendeu (Ne 13:11), protestou (Ne 13:15), condenou e mandou corrigir os erros, descasos e pecados cometidos pelos sacerdotes, pelos magistrados, pelos nobres e pelo povo (Ne 13:11,17,25). Hoje é comum que as (raras) críticas feitas às lideranças, à luz da palavra, com zelo, e em obediência e coerência com o espírito profético e apostólico do evangelho, sejam, por vezes, desonesta e injustamente rotuladas de divisoras, facciosas e perturbadoras da “paz” e da “união” da igreja (paz e união estas que apenas válidas quando alicerçadas nas verdades bíblicas), tal como quis fazer o rei Acabe a Elias e rei Jeroboão a Amós, recebendo a devida resposta dos profetas. E sucedeu que, vendo Acabe a Elias, disse-lhe: És tu o perturbador de Israel? Então disse ele: Eu não tenho perturbado a Israel, mas tu e a casa de teu pai, porque deixastes os mandamentos do SENHOR (...)(1Rs 18:17-18). Apego à verdade, e não submissão ao erro e ao engano. Como nos mostram Neemias, os profetas, e os próprios reformadores, a indignação, o confronto e a contenda não devem ser estigmatizados, sendo a ausência deles caminho certo para a perdição. A boa contenda está embasada na Palavra, movida pelo Espírito e envolta pelo amor, já a má contenda nasce da inveja (Tg 3:14), da vaidade e futilidade (Tt 3:9), além da carnalidade (1Co 3:3). Rotulando a quem questiona, se interdita a troca e a confrontação de ideias e dificulta-se o hábito da reflexão e da iluminação do Espírito, da renovação da mente, e com ela, dos propósitos e práticas. A crítica e a má receptividade aos questionamentos realizados dentro do espírito bíblico, em geral se originam na insegurança, vaidade, medo, autoritarismo, soberba e apego ao poder; comumente recobrem decisões, práticas e hábitos na gestão da igreja que, se expostos à luz, seriam, no mínimo, questionados. Submissão não é sinônimo de ausência de questionamento. Perguntas pertinentes merecem resposta.

Epílogo

Soube do mal que Eliasibe fez para beneficiar a Tobias...(Ne 13:7) - Alguns sabiam , discerniam , mas  não se opuseram, por ceder ao medo, por temer retaliações do sumo sacerdote e dos seus. Outros podem ter contado o fato a Neemias sem sequer perceber o mal presente na atitude de Eliasibe. Os dois casos são igualmente graves, o medo que imobiliza e inutiliza o discernimento, e a ingenuidade e falta de discernimento que deságuam no apoio a ações e a pessoas cujas reais motivações não apontam para Deus, apesar de usualmente serem as que mais se utilizam do seu nome, conforme nos alerta o Senhor Jesus (Mt 7:22).

Soube do mal que Eliasibe fez para beneficiar a Tobias – A atitude de Eliasibe em tomar espaço e recursos da casa de Deus foi essencialmente má, conforme denunciada por Neemias. A simples motivação de beneficiar ou ajudar alguém não chancela qualquer ato como correto diante de Deus. O uso de tal justificativa para se lançar mão inadvertida e arbitrariamente dos recursos da casa de Deus é frágil e não encontra sustentação no evangelho; o fato de alguma medida ser aprovada por qualquer maioria, não transforma um ato em essencialmente correto, pois ainda não inventaram conselhos de homens que subvertam a palavra da verdade, porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante do que espada alguma de dois gumes, e penetra até à divisão da alma e do espírito, e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração (Hb 4:12).

Artur Leonardo Gueiros Barbosa