No livro de Neemias, em
seu capítulo quinto, encontramos um episódio essencial para o processo de
reconstrução da cidade de Jerusalém, tarefa a qual o filho de Hacalias tinha se
proposto realizar diante de Deus. Trata-se do momento em que os homens e
mulheres do povo clamaram contra seus irmãos pela situação em que se encontravam:
pediam trigo para não morrerem de fome, eles e seus filhos; tiveram suas
terras, suas plantações e suas casas penhoradas e na mão de credores;
precisavam tomar empréstimos até para pagar os tributos do rei; por fim, seus
próprios filhos e filhas tinham sido sujeitos à escravidão a outros judeus, e
não havia nada que eles pudessem fazer, eles simplesmente não tinham como se
defender (Ne 5:1-5). Estabeleceu-se uma situação em que privilegiados aproveitavam-se
da condição frágil e desesperadora dos outros para explorá-los sem limites; estado
agravado pelo fato dos credores serem irmãos dos devedores, todos judeus.
É comum, no nosso
dia-a-dia, ouvirmos expressões como “tempo é dinheiro” e “amigos, amigos,
negócios à parte”. Devido à contínua repetição, muitos cristãos acabam, sem
perceber, moldando-se ao conteúdo destas máximas que estabelecem o ganhar
dinheiro como parâmetro “ético” no lugar do evangelho, orientando suas vidas e
tomando suas decisões baseados na lógica insensível, fria e desumana do “custo
de oportunidade”. Os conceitos cristãos de misericórdia, justiça, serviço e
mordomia não mais definem e apontam o uso dos recursos dados por Deus. Do mesmo
modo que nos tempos de Neemias, há hoje irmãos que ao emprestar recursos a pessoas
em dificuldades, em situação de privação e angústia, muitas vezes irmãos na fé,
quando não parentes próximos, o fazem a juros, incorrendo no mesmo
comportamento dos credores judeus, alvos da indignação do povo. Ignorar o
sofrimento de parentes e irmãos estando em situação de ajudá-los é um ato
infeliz, condenado firmemente nas palavras do apóstolo Paulo a Timóteo: se alguém não tem cuidado dos seus, e
principalmente dos da sua família, negou a fé, e é pior do que o infiel (1Tm
5:8).
Crentes que são
empregadores, empresários, e não garantem nem respeitam os direitos
trabalhistas dos seus empregados, como a carteira assinada; que não lhes pagam
em dia e condignamente o salário devido (Mt 10:10) mesmo tendo a possibilidade
de fazê-lo (Tiago 5:4,5); que os constrangem a trabalhos e serviços extras sem
a devida compensação, aproveitando-se da fragilidade e impotência alheia (... e nada podemos fazer... Ne 5:5), agem
como os usurários dos tempos de Neemias. Tanto no passado quanto nos dias de
hoje, tais pessoas se utilizam de argumentos cínicos e distantes do temor do
Senhor para tentarem justificar a exploração e o abuso que cometem com aqueles
que se encontram desprotegidos e em suas mãos: dizem que “escolheram” ajudar,
quando podiam se negar a fazê-lo; o fato é que se se decide ajudar alguém,
deve-se fazê-lo sem se buscar tirar qualquer vantagem disso. Ainda mais grave
se torna este tipo de comportamento patronal quando os empregados,
desrespeitados em seus direitos e dignidade, são irmãos em Cristo Jesus. Tal
situação escandaliza duplamente o evangelho.
Neemias,
ao tomar conhecimento da situação do povo, muito se aborreceu e se indignou, agindo
energicamente para corrigi-la por identificar ali um claro desrespeito à lei de
Deus - O que vocês estão fazendo não
está certo. Vocês devem andar no temor do Senhor para evitar a zombaria dos
outros povos... (Ne 5:9). Ele identificou o
erro e agiu para extirpá-lo de imediato. Tratou aqueles homens pelo que eles
realmente eram: Usurários! Exigindo deles a devolução de absolutamente tudo o
que haviam tomado dos seus irmãos como consequência das penhoras, incluindo os
juros cobrados. Para o empregador que nega os direitos básicos dos seus
empregados, compensar a falta de testemunho com religiosidade - músicas,
reuniões e cultos no local de trabalho, “fartas” contribuições e participação
nas atividades eclesiásticas – pode até iludir a maioria dos homens e a si
mesmo, mas não engana os que, à luz do Evangelho, se atém mais aos atos que às
palavras, e, mais importante, não engana a Deus (Tg 1:22).
Neemias e seus chegados
abriram mão do dinheiro e do trigo que tinham emprestado, pois levaram em conta
o estado de dificuldade do povo. Posteriormente, quando atuando como governador
na terra de Judá, o servo de Deus se
absteve das práticas opressoras e impiedosas dos seus antecessores e declarou o
porquê: eu assim não fiz, por causa do temor de Deus (Ne 5:15). O cristão não se
aproveita da fragilidade do outro para lucrar. O cristão não se esconde por trás
de bordões cínicos, criados por aqueles que servem à riqueza, como desculpa para
ser insensível e indiferente à situação do próximo, mas anda segundo a palavra
da verdade, agindo retamente. O cristão abre mão de um direito seu, se a
perpetração desse direito vier a privar outros de recursos que são essenciais à
sua dignidade.
O servo do Senhor que
liderava a reconstrução de Jerusalém convocou um grande ajuntamento e
confrontou um pecado real que afetava a vida de todo o povo remanescente na
terra de Judá. Tal atitude nos fornece dois pontos de reflexão: O primeiro é
que não vale a pena continuarmos a vida diária na comunidade cristã andando no
automático, com muito ativismo e pouca ou nenhuma reflexão e autocrítica, sem
tratarmos os pecados que vão surgindo no caminho. Para Neemias, a correção de
rumo era tão importante quanto à reconstrução em si, caso contrário, estariam
edificando um castelo de areia, com bases que não apontavam para o reino de
Deus. O segundo ponto é que cabe a nós e, sobretudo, às nossas lideranças, na
forma dos presbíteros docentes e regentes, refletirmos se as práticas
pecaminosas denunciadas pelo povo de outrora e combatidas por Neemias, não
estão presentes também hoje entre nós, e se não merecem ser tratadas com o
mesmo zelo e diligência com que o são outros pecados, notadamente os relativos
à sensualidade.